Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
31/08/2020
Renata Lo Prete celebra a rotina de fazer jornalismo “com
cada pé em uma canoa”
A jornalista que revelou o escândalo do Mensalão completa um
ano à frente do podcast ’O Assunto’, enquanto apresenta um telejornal diário e
um semanal na maior emissora do Brasil
A jornalista Renata Lo Prete durante gravação do podcast 'O
Assunto'.
Por Joana Oliveira
Renata Lo Prete é uma mulher concisa. Primeiro, pela própria
personalidade da jornalista de 56 anos. Depois, por mais de duas décadas de
experiência no jornalismo impresso, especialmente na coluna Painel da Folha de
S.Paulo, onde assinava e editava notas curtas sobre política ―e onde revelou,
com uma entrevista hoje considerada histórica, a existência de um esquema que
tornaria-se conhecido como mensalão. Sua carreira, no entanto, é prolixa. E, há
um ano, quando já “estava com as mãos bem cheias” como editora e âncora do
Jornal da Globo, que vai ao ar diariamente, por volta da meia-noite, e do
semanal Painel, da GloboNews, abraçou também O Assunto, podcast diário que
alcançou a marca de 33 milhões de downloads. “Quando conversei com meu marido
[o também jornalista Melchiades Filho], ele, que nunca diz que’ não vai dar’,
me disse com todas as letras:’ Com tudo que você já está fazendo, não vai dar”,
lembra ela em conversa com o EL PAÍS, por telefone.
Apesar de hesitar, Lo Prete disse sim e, como ela mesma
fala, hoje trabalha com “cada pé em uma canoa”. No ar na madrugada, dorme menos
do que gostaria — das 3h30 às 9h30 — e admite que o trabalho ocupa hoje a maior
parte de sua vida. “Sou grata ao destino por essa fase mais louca da minha profissão
ter acontecido quando meus filhos já estavam grandes, eles têm muita
independência”, diz, referindo-se ao filho de 23 anos e à filha de 17.
Como quase tudo na rotina da jornalista, a conversa por
telefone com o EL PAÍS foi em meio a uma correria: um dos entrevistados do
podcast que iria ao ar na manhã seguinte desmarcou em cima da hora e a produção
buscava uma outra fonte. Apesar disso, Lo Prete respondeu a todas as questões
com o tom direto e, ao mesmo tempo, descontraído que cativou o público do
telejornal do começo da madrugada. Ao deixar o jornal impresso pela televisão,
ela foi um dos nomes que abriram espaço para mulheres além das bancadas de
âncoras, mas também como comentaristas políticas. “Já houve mais machismo em
nossa área, como todo mundo sabe. Hoje, pela força coletiva de muita gente, de
muitas colegas nossas que, com profissionalismo e conteúdo de qualidade,
impuseram seu trabalho, isso está mudando. Todas nós estamos abrindo caminho”,
afirma.
Ela, que entre os jornais impressos e a TV fez pouco rádio,
diz ter aprendido novas habilidades de comunicação com O Assunto. “Desde as
densidades de voz, a maneira de falar, já que no podcast você está falando
quase sempre no ouvido da pessoa, o que exige uma outra espontaneidade, uma
outra delicadeza. Na TV também tem isso, mas lá você opera também com sua
imagem, é diferente”. Outro aprendizado diz respeito à valorização dos aspectos
sonoros de uma história e como pensar a narrativa a partir disso. “Outro dia
estava assistindo aquele documentário Honeyland e fiquei pensando que, se fosse
contar aquela história num podcast, o zumbido das abelhas seria super
importante”, ri.
Lo Prete é fã de podcasts serializados, como Slow Burn, da
Slate Magazine, que narra, a partir de personagens secundários, o processo de
impeachment de Richard Nixon nos Estados Unidos. Também é ouvinte regular do
The Daily, o podcast diário do The New York Times, e do Today Explained, da Vox
Media. O mais recente a entrar é sua playlist é o Hacks on Tap, uma resenha
semanal da campanha eleitoral norte-americana. “Eu tinha essas referências, mas
sabia que o que íamos fazer era diferente, porque queríamos fazer um produto
para o grande público, para levar essa ideia da informação de qualidade,
aprofundada em um tempo não muito longo, para caber no dia da pessoa, em
tarefas específicas dela”, conta.
Entre os mais de 350 entrevistados até agora, ela lembra de
Tiago, um comerciante da região metropolitana de Recife, que, no início da
pandemia do novo coronavírus no Brasil, narrou a saga de tentar conseguir
atendimento para o pai, que acabou morrendo de covid-19. “Naquele relato,
estavam congregadas várias histórias da pandemia, o déficit de testagem, o luto
sem cerimônia, foi muito impactante de ouvir”.
Lo Prete também sente especial orgulho do episódio sobre a
perda de anciãos indígenas para o coronavírus, que levam com eles idiomas,
cultura e saberes tradicionais de seus povos. “Fiquei muito impressionada com o
Alisson Munduruku, que, ao contar quem era o pai dele na comunidade e o que ele
representava, dá às pessoas uma dimensão do que essas perdas significam. Eu não
vou esquecer nunca que tomei o depoimento desse rapaz, o que ele falou e as
histórias que tinham ali”.
Com uma agenda já apertada, a pandemia acarretou em ainda
mais trabalho para a jornalista (e todos os seus colegas de profissão). Lo
Prete lembra dos meses “particularmente mais caóticos”, abril e maio, em que a
pandemia ganhava força no país, ao mesmo tempo em que a crise política se
acentuava. Foi o período das manifestações antidemocráticas, a queda do então
ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, e depois a saída do ministro da
Justiça Sergio Moro. “Começávamos o dia gravando um episódio e, ao longo das
horas, sempre tínhamos que mudar tudo. A gente já fez coisas que até Deus
duvida, de eu estar sentada na bancada do Jornal da Globo para gravar uma
chamada e, dali mesmo, gravar também uma cabeça [abertura] nova para atualizar
o podcast”.
Tanto trabalho tem dados frutos. O Assunto abrange uma audiência
mais jovem, de faixa etária similar aos dos próprios filhos da jornalista.
“Meus filhos cresceram em uma casa de dois jornalistas do impresso, mas nunca
se interessaram por jornal. Liam muitos livros e se informavam de outras
formas. Mesmo quando fui para a TV, meu público não os incluía. O podcast é a
primeira coisa que faço na vida que eles aparecem comentando, porque os amigos
ouvem”, comemora. Ela conta, com alegria, que a filha chegou um dia da escola
dizendo que o professor de História recomendou ouvir um episódio sobre o Chile.
No Twitter, outros educadores recomendam a audição d’O Assunto para quem se
prepara para o Enem e vestibulares. “Acho isso sensacional! É das coisas que me
dá mais alegria essa ideia que o podcast pode ser um serviço de jornalismo de
qualidade”.
Com um público cada vez maior e tanta atenção nas redes
sociais, ela se sente contemplada pela categoria de jornalista celebridade?
“Nunca nem me imaginei nesse lugar”, responde, categórica. “Eu sou jornalista,
a notícia não sou eu. Sou jornalista e pronto”, acrescenta e pede desculpa,
porque precisa encerrar a conversa para resolver o perrengue do dia. “Estou
tirando o pai da forca”, diz apressada, mas com bom humor, antes de dar tchau.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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