sábado, 5 de setembro de 2020

Renata Lo Prete celebra a rotina de fazer jornalismo...


Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 31/08/2020

Renata Lo Prete celebra a rotina de fazer jornalismo “com cada pé em uma canoa”

A jornalista que revelou o escândalo do Mensalão completa um ano à frente do podcast ’O Assunto’, enquanto apresenta um telejornal diário e um semanal na maior emissora do Brasil

A jornalista Renata Lo Prete durante gravação do podcast 'O Assunto'.

Por Joana Oliveira

Renata Lo Prete é uma mulher concisa. Primeiro, pela própria personalidade da jornalista de 56 anos. Depois, por mais de duas décadas de experiência no jornalismo impresso, especialmente na coluna Painel da Folha de S.Paulo, onde assinava e editava notas curtas sobre política ―e onde revelou, com uma entrevista hoje considerada histórica, a existência de um esquema que tornaria-se conhecido como mensalão. Sua carreira, no entanto, é prolixa. E, há um ano, quando já “estava com as mãos bem cheias” como editora e âncora do Jornal da Globo, que vai ao ar diariamente, por volta da meia-noite, e do semanal Painel, da GloboNews, abraçou também O Assunto, podcast diário que alcançou a marca de 33 milhões de downloads. “Quando conversei com meu marido [o também jornalista Melchiades Filho], ele, que nunca diz que’ não vai dar’, me disse com todas as letras:’ Com tudo que você já está fazendo, não vai dar”, lembra ela em conversa com o EL PAÍS, por telefone.

Apesar de hesitar, Lo Prete disse sim e, como ela mesma fala, hoje trabalha com “cada pé em uma canoa”. No ar na madrugada, dorme menos do que gostaria — das 3h30 às 9h30 — e admite que o trabalho ocupa hoje a maior parte de sua vida. “Sou grata ao destino por essa fase mais louca da minha profissão ter acontecido quando meus filhos já estavam grandes, eles têm muita independência”, diz, referindo-se ao filho de 23 anos e à filha de 17.

Como quase tudo na rotina da jornalista, a conversa por telefone com o EL PAÍS foi em meio a uma correria: um dos entrevistados do podcast que iria ao ar na manhã seguinte desmarcou em cima da hora e a produção buscava uma outra fonte. Apesar disso, Lo Prete respondeu a todas as questões com o tom direto e, ao mesmo tempo, descontraído que cativou o público do telejornal do começo da madrugada. Ao deixar o jornal impresso pela televisão, ela foi um dos nomes que abriram espaço para mulheres além das bancadas de âncoras, mas também como comentaristas políticas. “Já houve mais machismo em nossa área, como todo mundo sabe. Hoje, pela força coletiva de muita gente, de muitas colegas nossas que, com profissionalismo e conteúdo de qualidade, impuseram seu trabalho, isso está mudando. Todas nós estamos abrindo caminho”, afirma.

Ela, que entre os jornais impressos e a TV fez pouco rádio, diz ter aprendido novas habilidades de comunicação com O Assunto. “Desde as densidades de voz, a maneira de falar, já que no podcast você está falando quase sempre no ouvido da pessoa, o que exige uma outra espontaneidade, uma outra delicadeza. Na TV também tem isso, mas lá você opera também com sua imagem, é diferente”. Outro aprendizado diz respeito à valorização dos aspectos sonoros de uma história e como pensar a narrativa a partir disso. “Outro dia estava assistindo aquele documentário Honeyland e fiquei pensando que, se fosse contar aquela história num podcast, o zumbido das abelhas seria super importante”, ri.

Lo Prete é fã de podcasts serializados, como Slow Burn, da Slate Magazine, que narra, a partir de personagens secundários, o processo de impeachment de Richard Nixon nos Estados Unidos. Também é ouvinte regular do The Daily, o podcast diário do The New York Times, e do Today Explained, da Vox Media. O mais recente a entrar é sua playlist é o Hacks on Tap, uma resenha semanal da campanha eleitoral norte-americana. “Eu tinha essas referências, mas sabia que o que íamos fazer era diferente, porque queríamos fazer um produto para o grande público, para levar essa ideia da informação de qualidade, aprofundada em um tempo não muito longo, para caber no dia da pessoa, em tarefas específicas dela”, conta.

Entre os mais de 350 entrevistados até agora, ela lembra de Tiago, um comerciante da região metropolitana de Recife, que, no início da pandemia do novo coronavírus no Brasil, narrou a saga de tentar conseguir atendimento para o pai, que acabou morrendo de covid-19. “Naquele relato, estavam congregadas várias histórias da pandemia, o déficit de testagem, o luto sem cerimônia, foi muito impactante de ouvir”.

Lo Prete também sente especial orgulho do episódio sobre a perda de anciãos indígenas para o coronavírus, que levam com eles idiomas, cultura e saberes tradicionais de seus povos. “Fiquei muito impressionada com o Alisson Munduruku, que, ao contar quem era o pai dele na comunidade e o que ele representava, dá às pessoas uma dimensão do que essas perdas significam. Eu não vou esquecer nunca que tomei o depoimento desse rapaz, o que ele falou e as histórias que tinham ali”.

Com uma agenda já apertada, a pandemia acarretou em ainda mais trabalho para a jornalista (e todos os seus colegas de profissão). Lo Prete lembra dos meses “particularmente mais caóticos”, abril e maio, em que a pandemia ganhava força no país, ao mesmo tempo em que a crise política se acentuava. Foi o período das manifestações antidemocráticas, a queda do então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, e depois a saída do ministro da Justiça Sergio Moro. “Começávamos o dia gravando um episódio e, ao longo das horas, sempre tínhamos que mudar tudo. A gente já fez coisas que até Deus duvida, de eu estar sentada na bancada do Jornal da Globo para gravar uma chamada e, dali mesmo, gravar também uma cabeça [abertura] nova para atualizar o podcast”.

Tanto trabalho tem dados frutos. O Assunto abrange uma audiência mais jovem, de faixa etária similar aos dos próprios filhos da jornalista. “Meus filhos cresceram em uma casa de dois jornalistas do impresso, mas nunca se interessaram por jornal. Liam muitos livros e se informavam de outras formas. Mesmo quando fui para a TV, meu público não os incluía. O podcast é a primeira coisa que faço na vida que eles aparecem comentando, porque os amigos ouvem”, comemora. Ela conta, com alegria, que a filha chegou um dia da escola dizendo que o professor de História recomendou ouvir um episódio sobre o Chile. No Twitter, outros educadores recomendam a audição d’O Assunto para quem se prepara para o Enem e vestibulares. “Acho isso sensacional! É das coisas que me dá mais alegria essa ideia que o podcast pode ser um serviço de jornalismo de qualidade”.

Com um público cada vez maior e tanta atenção nas redes sociais, ela se sente contemplada pela categoria de jornalista celebridade? “Nunca nem me imaginei nesse lugar”, responde, categórica. “Eu sou jornalista, a notícia não sou eu. Sou jornalista e pronto”, acrescenta e pede desculpa, porque precisa encerrar a conversa para resolver o perrengue do dia. “Estou tirando o pai da forca”, diz apressada, mas com bom humor, antes de dar tchau.

Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com

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